Reportagem

Vidas de Mar

Então, o que é que achou? É uma vida dura, não é?», pergunta um dos pescadores do António Jacob no regresso ao Porto de Abrigo, enquanto continua a separar anzóis com uma perícia notável. As 18 horas a bordo, numa noite de chuva, vento e mar agitado, só permitem uma resposta: «É, sem dúvida!». Mas para se perceber melhor o “porquê” é necessário começarmos pelo início da história.

Depois de uma noite de trovoada, o dia nasceu com céu limpo e temperatura amena. A partir da tarde, o calor sugeria roupa leve. Acompanhar a pesca ao Peixe-espada Preto adivinhava-se tarefa fácil. Felizmente, ao chegarmos ao Porto de Abrigo, a aragem fria devolveu-nos o bom senso e equipámo-nos a rigor.
Um grupo de homens carregava para bordo do António Jacob, embarcação de 16 metros onde passaríamos as próximas horas, o aparelho devidamente “iscado” com cavala. António José, mestre da embarcação, chegou à hora marcada, cumprimentou-nos e, sem demoras, subiu a bordo com os seis homens que o acompanham há vários anos. Às quatro da tarde, em ponto, fizemo-nos ao mar.

António, como muitos dos pescadores locais, começou a ajudar o pai aos 14 anos e hoje, quatro décadas depois, continua a “ir ao mar” três vezes por semana. A embarcação da família foi das primeiras a pescar espada preto em Sesimbra, já lá vão três décadas, por isso conhece bem os segredos desta arte. «E os seus filhos, mestre, seguem-lhe as pisadas?», perguntamos. «As filhas têm a vida organizada e o mais novo, de 13 anos, gosta de pescar, mas à cana, em terra. Não vem para o mar», revela, divertido. «Aos fins-de-semana lá me convence a ir com ele».

O pesqueiro para onde nos dirigimos fica a cerca de 24 milhas de Sesimbra e sabemos bem que para estreantes nestas lides passar o Cabo Espichel é um teste à resistência. Os pescadores também o sabem. «Vá comendo sempre qualquer coisa», aconselham.

«Vamos navegar cerca de uma hora até à primeira baliza», anuncia o mestre, na ponte de leme, «mas o mar hoje está bom, não vai haver problema», tranquiliza. «Primeiro recolhemos a “caçada” que largámos há dois dias e depois, então, largamos a nova», explica. A primeira tarefa representa cerca de 8 a 10 horas consecutivas de trabalho. «A segunda é mais rápida, e normalmente faz-se numa hora».

Enquanto seguimos em direcção ao Cabo, António José vai falando da pesca, sempre com o olhar no horizonte, como se apreciasse uma paisagem pela primeira vez. «Os mais novos não se interessam pela profissão», garante,­ desiludido. «A continuar assim, quan­do esta geração acabar, acaba a pesca», continua. «Peixe vai haver sempre, homens para pescar é que não».
A crise, que se agrava há muito no sector, não é propriamente novidade. «Hoje é tudo muito caro – o gasóleo, as pitas, os arames, os anzóis. Em contrapartida, vende-se o peixe mais barato do que há 20 anos», desabafa. «Mas agora estamos bem na ArtesanalPesca», assegura. «A organização de produtores fez com que se estabilizasse o preço do pescado e isso é uma garantia importante para nós».

Seguimos a pouco mais de 10 milhas por hora e faltam seis milhas para o pesqueiro. Os homens aproveitam para comer e preparar o equipamento. Contam-nos histórias de outras fainas, partilham problemas que os afectam mas nunca escondem o orgulho na profissão. «Não é para qualquer um», afirmam convictos.

À medida que nos aproximamos da primeira bóia, António José tira os olhos do mar e passa a dar atenção aos modernos equipamentos que tem ao dispor: GPS, radar, sonda e piloto automático. A roda do leme ainda se mantém, ao centro.

Estamos muito perto do destino, mas a baliza que sinaliza a “caçada” teima em não aparecer no radar. A experiência diz-lhe que já a devia ter encontrado e começa a suspeitar que possa ter sido cortada por um navio da marinha mercante. «Não é caso raro», suspira desanimado. Os homens sobem à proa e tentam avistá-la, mas as vagas são altas e o desalento começa a instalar-se. «Desapareceu, o que vai obrigar a progredir mais 10 milhas, cerca de 45 minutos de navegação, para se começar a recolher o aparelho no extremo oposto», assume António José. A “companha” regressa aos seus pensamentos. O potente motor Caterpillar de 250 cavalos solta um ronco, e o “Jacob” volta a acelerar. «Estou com o coração nas mãos», confessa. A “caçada” ou aparelho é um conjunto complexo de cabos com anzóis, bóias e pesos que se estende por 10 milhas (cerca de 15 quilómetros). Em cada ponta há balizas que indicam a localização. Caso desapareçam ambas, vai ao fundo e perde-se tudo: materiais, trabalho e peixe. «É um prejuízo enorme», acrescenta angustiado.

«Vamos navegar cerca de uma hora até à primeira baliza»,

anuncia o mestre, na ponte, «mas o mar hoje está bom, não vai haver problema», tranquiliza.Algum tempo depois, a segunda baliza surge no radar e respira-se de alívio. No entanto, como um azar nunca vem só, um enorme navio de carga navega exactamente na sua direcção. O radar não deixa margem para dúvida. «Vai ser cortada», grita o mestre da janela. Faz-se silêncio. Todos olham com expectativa para o pequeno mastro de madeira tosca preso a um bidão de plástico, com chapas de zinco no topo, que oscila com violência, ao longe. É nesta altura que temos a certeza que a pesca é feita de experiência, saber, sacrifício, mas também de sorte e de azar.

Finalmente, o navio passa e a baliza mantém-se a flutuar. Sem manifestações de alegria, os seis homens, já equipados com fatos de oleado, luvas e botas, começam automaticamente a mover-se com precisão em várias direcções e, de repente, surgem tabuleiros, caixas, suportes e estruturas de apoio que são colocados ao longo do convés. Está tudo pronto para o início da jornada.

O mar está calmo, e tudo indica que teremos um pôr-do-sol inesquecível. Contudo, em poucos minutos, uma nuvem cresce no horizonte e rapidamente transforma o cenário. A bordo adivinha-se chuva forte.

Assim que é recolhida a baliza, os guinchos começam a puxar cabos para trazer o aparelho para a superfície. O Peixe-espada Preto pesca-se entre as 600 e as 700 braças, o que equivale a 1500 metros de profundidade, portanto são cerca de 45 minutos até à recolha do primeiro lastro. Pouco depois, chegam um peixe-espada e um tubarão lusitano.

Manter cabos alinhados e desembaraçados, recuperar bóias e lastro, arrumar materiais, recolher, lavar, separar e armazenar o peixe são tarefas mecânicas que se prolongam de uma forma impressionante por 12 horas a fio. Nem a chuva, que começa a cair forte e sem interrupção, nem as vagas que abanam vigorosamente o barco, dificultando os movimentos e encharcando o convés, fazem com que o ritmo abrande. Debaixo dos oleados, os seis homens que há pouco conversavam calmamente connosco trabalham agora sem interrupção. A organização é impressionante, a sincronia quase perfeita. Nada os distrai, nada os detém. Cada um sabe o que vai fazer a seguir e no espaço exíguo conseguem não se atrapalhar. São muitos anos de trabalho em conjunto e grande respeito pela profissão.

Mesmo assim, ainda há tempo para um conselho: «Não ande à chuva, abrigue-se», mas a nossa curiosidade é mais forte.

A maior parte da noite estão debruçados sobre o mar e um balanço pode lançá-los borda fora. Embora haja iluminação, a água é escura e muito agitada, o que tornaria qualquer tentativa de salvamento num momento dramático. Sabem perfeitamente o risco que correm, mas há muito que se habituaram a aceitá-lo. Para eles, é esta a essência de um verdadeiro pescador.

A recolha do aparelho termina de­pois da alvorada. Apesar do esfor­ço, a pescaria foi das mais fracas do ano, mas o momento não é para lamentações. É necessário passar à etapa seguinte sem demoras e começar a preparar a nova “caçada”. Num processo completamente artesanal, o lastro e as centenas de metros de cabos com anzol e isco são lançadas ao mar com uma precisão surpreendente. Na ponte, o mestre toma notas com base nas informações do GPS e da sonda, que lhe vão permitir voltar a encontrar o aparelho.

Colocada a última baliza, o barco ruma então a terra. São quase 9 da manhã mas ainda não é tempo de descanso. Com uma energia surpreendente, arrumam-se os materiais de trabalho, organiza-se os cabos do aparelho e recuperam-se os anzóis. A poucas milhas de Sesimbra terminam, finalmente, e ouve-se: «Agora chego a casa, deito-me e só acordo à noite para ver o Benfica». Para quem passou tantas horas a trabalhar pode parecer um simples conforto. Tão simples quanto a vida destes homens que, sem se vangloriarem, enfrentam o mar quase diariamente. A coragem e a determinação com que o fazem não está ao alcance de qualquer um.