O Espadarte de Sesimbra

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«Ponham-se à feição, pá. Tá ali um ganda peixe». Passavam poucos minutos das seis da madrugada quando uma voz forte se fez ecoar pelo mar fora. Augusto estava a “matar o bicho” e nem teve tempo de acabar de comer a batata-doce cozida que tinha nas mãos, um dos seus manjares preferidos. Largou tudo, foi preparar o arpão e posicionou-se na proa da barca, que se encontrava a “noreste”, como os pescadores de Sesimbra designam a zona compreendida entre a Baía e o Cabo Espichel, onde era frequente pescarem. A bordo, a companha já estava habituada a apanhar espadartes, mas aquele dia, algures na década de 50 do século XX, iria tornar-se memorável. Após uma curta perseguição, Augusto arpoou o primeiro, depois o segundo, o terceiro. Foi assim durante todo o dia, até chegar aos 16, todos com mais de cem quilos.

«Nem sei como é que conseguimos arrumá-los todos na barca, que só tinha 11 metros e levava ainda três aiolas a bordo», lembra Marques Pinto, proprietário da embarcação e um dos mais exímios pescadores de espadartes de Sesimbra, até aos anos 70 do século passado. A pesca ocorria normalmente durante o dia, entre julho e setembro, época em que estes pelágicos mais se aproximavam da costa. «Por vezes encontravam-se a menos de uma milha de terra», conta.

Embora fosse habitual pescar à linha, foi na pesca com arpão que se tornou especialista. Diz que o segredo consistia em «detetar o peixe à superfície e aproximar-se devagarinho, de frente para ele». Quando este se encontrava a uma distância curta da barca, o arpoador tentava atingi-lo com o arpão, de preferência próximo da cabeça, de modo a deixá-lo mais fragilizado. Mesmo assim, «quando eram dos grandes, a luta entre pescador e peixe chegava a durar três horas», recorda. A abundância era tal que quase todos os dias apanhavam, em média, seis exemplares. Assim que o espadarte era arpoado a captura era feita por dois homens numa aiola. Um assumia a função de remador, enquanto o outro tinha a dura tarefa de trabalhar o peixe. Normalmente a embarcação levava quatro aiolas para o mar, e chegavam a operar todas ao mesmo tempo.

Nesta batalha dos mares, apesar do seu reduzido tamanho, a aiola assumia um papel decisivo, mostrando estar sempre à altura do grande duelo, pela estabilidade e segurança que proporcionava. O facto de encontrarem muito alimento junto à costa, principalmente xaputas, uma das várias espécies de que se alimenta, estaria na base da passagem dos espadartes pelos mares de Sesimbra, e os pescadores sabiam disso.

Embora este peixe já fosse muito importante do ponto de vista económico, não apenas no século XX, com a pesca comercial, mas muito antes, como o comprova a existência de almadravas na Idade Média, grandes armações fixas montadas ao longo da costa sesimbrense, foi o Big Game Fishing que deu notoriedade a Sesimbra como um dos melhores locais para a pesca aos espadartes. A captura de um exemplar com 153 quilos, por parte de Manuel Frade, em 30 de outubro de 1954, e o forte impulso dado na década de 50 pelo médico e professor catedrático Arsénio Cordeiro, um dos grandes entusiastas da pesca ao espadarte, foram decisivos para atrair amantes do Big Game Fishing de todo o mundo. Arsénio Cordeiro inovaria mesmo com a instalação de uma cadeira de pesca fixa dentro de uma aiola, na qual mediu forças inúmeras vezes com espadartes de grande porte. Atualmente, esta cadeira faz parte do espólio do Museu Municipal de Sesimbra, e poderá ser vista, em breve, no futuro Museu do Mar, a ser instalado na Fortaleza de Santiago.

Mas para Sesimbra, a época de ouro da pesca ao espadarte, que se prolongou até aos anos 70, significou muito mais do que o duelo entre o homem e um dos “senhores do mar”. A partir dos anos 50, a espécie viria a tornar-se num dos seus maiores “embaixadores” e isso ficou bem evidente na primeira unidade hoteleira, inaugurada em 1957, batizada como Pensão Espadarte, que pouco tempo depois viria a dar lugar ao Hotel com o mesmo nome. Para além dos seus reconhecidos méritos no plano turístico, ao criar condições para satisfazer a procura crescente por parte de cidadãos de todo o mundo, ávidos de uma grande experiência no mar, o seu proprietário, José Pinto Braz, soube capitalizar a fama de Sesimbra, e foi um dos principais dinamizadores do Big Game Fishing, ao adquirir um barco para levar os hóspedes à pesca.

Para alguns pescadores locais, conhecedores dos hábitos destes peixes, estava criada uma oportunidade de colocarem a sua experiência ao serviço do turismo, como foi o caso de Jonas Baeta Marques, convidado pelo empresário hoteleiro para comandar o seu barco. «Era habitual irmos para o “graçone”, um banco de pesca localizado a cerca de 14 milhas a sul de Sesimbra, porque sabia que lá ia encontrá-los», diz. Saíam perto das sete da madrugada e às vezes só voltavam ao fim da tarde. Aliás, na altura dizia-se que esta era a única zona do mundo onde se conseguia pescar espadartes à luz do dia, e isso foi determinante para atrair pescadores das mais variadas paragens. Mesmo sendo um acontecimento comum à época, a captura deste peixe era sempre um momento inesquecível, daí que cada exemplar era, invariavelmente, exibido no pórtico junto ao muro da praia, não raras vezes, ao lado de atuns e tubarões, a fim de serem fotografados juntamente com os pescadores. Para os autores da proeza, a ocasião simbolizava o triunfo do homem sobre um dos peixes mais admiráveis, dono de uma força descomunal, apenas vencido pelas modernas canas, carretos e linhas de pesca trazidas pelos praticantes do Big Game Fishing, ou pela coragem, persistência e astúcia dos experientes “lobos do mar”.

Um dos homens mais entendidos na matéria é João Conceição, também conhecido por “Zé da Calma”, que se iniciou bem cedo na arte de pescar espadartes. «Tinha 9 anos quando comecei a ir ao mar e, pouco tempo depois, tive o meu primeiro contacto com um destes “gigantes”», lembra. «Uma vez quase fiquei sem forças para aguentar a aiola perante a força do peixe». Às vezes ganhava o homem, outras não. Hoje, João Conceição governa o Parma, barco que se dedica à pesca do espadarte com palangre de superfície, na zona económica exclusiva nacional e nas águas internacionais próximas, chegando mesmo a operar a sul das Canárias. A viagem pode prolongar-se por vários dias ou semanas, e embora o navio esteja equipado com a tecnologia mais moderna, a experiência continua a ser um elemento fundamental para o sucesso da pescaria. «Temos de conhecer os hábitos dos peixes, as correntes, a temperatura da água, as luas e o tempo», revela.

Contrariamente à pesca feita antigamente junto a costa, em que se esperava por avistar o peixe para lançar a linha, hoje a faina ocorre em áreas que podem ficar a cerca de cinco dias de viagem, e cujas profundidades podem chegar aos 4 mil metros. O método também é diferente. Nesta pesca, o palangre é lançado ao final do dia, permanecendo entre os 120 e os 250 metros abaixo da linha de água, e pode estender-se por mais de 110 quilómetros. Na manhã seguinte é efetuada a recolha do “aparelho”, que pode ter até 1150 anzóis, separados entre si por cerca de cem metros. A razão pela qual o “aparelho” é colocado a esta profundidade deve-se aos hábitos alimentares do espadarte que, para além de estar incluído no grupo das espécies designadas de grandes migradores, efetua migrações verticais diárias em busca de alimento, que podem ir até mais de 600 metros de profundidade durante a noite.

A sua mandíbula superior alongada, de extrema utilidade para ferir e cortar as presas, e a sua visão, que lhe permite
localizar as presas mesmo em ambiente de pouca luz, são caraterísticas que o tornam um grande predador. Apresentando um comportamento que podemos definir como “oportunista”, o espadarte alimenta-se tanto de peixes como de cefalópodes ou crustáceos, segundo o estudo Aspectos da Biologia do Espadarte, Xiphias Gladius L. 1758, nas Águas Portuguesas, realizado pela sesimbrense Ana Filipa Baeta, no âmbito da sua licenciatura em Biologia Aplicada aos Recursos Animais, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Este trabalho baseou-se em amostras de cerca de cem peixes, alguns dos quais amostrados durante a sua viagem ao mar, a bordo do barco Filipa Miguel, e teve como objetivo contribuir para o conhecimento da biologia da espécie, analisando o crescimento, a reprodução e a alimentação da mesma.

Por se tratar de uma pesca longínqua, que obriga a conservar o peixe durante muitos dias após a captura este é imediatamente acondicionado em frigoríficos com uma temperatura a rondar os zero graus, rigorosamente monitorizada. O bom estado de conservação é fundamental para manter intactas as suas propriedades e o inconfundível sabor da espécie, cada vez mais utilizada na gastronomia. A sua carne macia e a ausência de espinhas tornam-no bastante apreciado, quer pela comunidade local, habituada a confecioná-lo de formas mais tradicionais, designadamente grelhado, de cebolada ou de caldeirada, quer por parte dos chefes de cozinha, que nos oferecem hoje uma maior variedade de pratos sofisticados à base de espadarte.

in Sesimbr’Acontece de setembro de 2012

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