Pescadores e Marítimos

barca-maritimos-pescadores

Sesimbra foi, durante séculos, famosa por ser terra de homens do mar. Homens conhecidos como pescadores e marítimos, os quais, ainda que tivessem origem comum, exerciam actividades ou profissões diferenciadas que tiveram a maior relevância na economia local. Marítimo tem aqui o sentido genérico de homem do mar, podendo ser ou não pescador, uma vez que era corrente a mobilidade profissional dado o carácter aleatório das pescas ou a sazonalidade de algumas das suas artes. A chamada cédula marítima, que era um título de habilitação dos profissionais da pesca, pois nunca houve cédula de pescador, servia também para qualificar todos aqueles que tinham qualquer outra ocupação no mar, sendo até idênticas as condições exigidas para a sua obtenção.

No contexto das pescas sesimbrenses, por marítimos eram designados os homens que tripulavam as embarcações de transporte de pescado e tráfego de mercadorias, porquanto, à grande capacidade produtiva das várias modalidades piscatórias teria de estar associada a da condução do peixe até aos grandes mercados consumidores do país, particularmente o de Lisboa. Importa sublinhar que nesse tempo, da navegação à vela, as grandes vias de comunicação eram as estradas do mar e, naturalmente, os principais meios de transporte eram os barcos que, em Sesimbra, tinham relevância na chamada “canoa da picada” utilizada, no seu regresso, como veículo de mercadorias destinadas geralmente ao comércio local.

Depois da implantação da República, uma pequena rua situada no extremo Poente da vila, junto ao ribeiro da Fonte Nova, recebeu o nome de “Operários Marítimos”. Para quem desconheça o contexto político-social que está na sua origem, aquela designação afigura-se estranha, incaracterística, numa terra que foi sempre constituída maioritariamente por pescadores. Teria outra expressão se fosse apenas “Rua dos Marítimos”, distinguindo uma profissão praticada por muitos sesimbrenses e que, embora ligada às pescas e delas dependentes, não era idêntica à dos pescadores.

A verdade porém é que os tais “operários marítimos” eram, nem mais nem menos, do que as centenas de pescadores que integravam as companhas das “armações à valenciana para a pesca da sardinha”, a arte que mais homens empregava e maior rendimento produzia. Contudo, a pesca das armações, por serem artes fixas, tinha um carácter absolutamente distinto das demais artes de pesca, principalmente da que era feita com aparelhos de anzol, o nosso tradicional espinhel. Porque a actividade das armações implicava mais trabalho braçal, do que sabedoria, ainda que a montagem daquele complexo sistema de ferros, cabos e vários tipos de rede, exigisse importante somatório de conhecimentos, cuja posse era principalmente do domínio dos mandadores, as tarefas rotineiras do levantar das redes podiam ser executadas com relativa facilidade por qualquer pessoa menos experiente. Por isso, e também por influências exógenas, foram considerados como operários duma indústria, cujos braços não eram apenas recrutados na comunidade piscatória, pois eram muitos os homens do campo que vinham para as armações.

Ao contrário, a pesca do anzol, a mais emblemática da vida sesimbrense, não era uma indústria mas sim uma arte, à qual se acedia através de uma longa aprendizagem e comprovado mérito. Diferença que tinha maior significado, no facto das barcas dessa pesca serem governadas por empresas familiares, visto que eram todas propriedade dos respectivos arrais e as companhas serem formadas, quase exclusivamente, pelos seus familiares, enquanto as armações, depois do liberalismo, estarem na posse de empresas, de tipo capitalista, compostas por gente estranha à vida do mar, de quem os pescadores eram empregados.

Os “operários marítimos”, porque eram em grande número e tinham frequentes discordâncias com as entidades patronais, criaram um organismo representativo com o nome de “Associação de Classe dos Operários Marítimos das Armações da Vila de Sesimbra”.

Era uma colectividade de feição sindical, criada em 30 de Março de 1911, que teve um papel relevante na defesa dos interesses dos seus associados, designadamente na obtenção de melhores remunerações. Todavia, a denominação de “operários marítimos” nunca foi além da letra dos seus estatutos, dado que todos oscomponentes das companhas das armações continuaram, como sempre, a serem nomeados e matriculados como pescadores, que de facto eram. Poupado aos desatinos, em várias épocas verificados na toponímia, o nome da rua lá continua, lembrando uma época plena de interesse para a história da atribulada vida piscatória de Sesimbra mas infelizmente ainda tão mal estudada.

António Reis Marques