O Cão D’Água

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Entre o copioso noticiário que a tomada de posse do presidente dos Estados Unidos da América provocou, contava- se o anúncio de que um exemplar do cão d’água português poderia vir a ser a nova  mascote da Casa Branca. A circunstância de ser um animal dócil, alegre, inteligente, bom companheiro, amigo das crianças e, para além disso, o seu pelo não provocar alergias terá determinado a escolha da sua oferta às filhas de Barack Obama.

Porque foi uma das figuras emblemáticas da pesca artesanal, até aos primeiros anos da década de 60 do século passado, pareceu-nos oportuno umas breves notas que lembrem aos mais velhos e, principalmente, revelem aos mais novos algumas das facetas mais interessantes da vida do cão d’água na nossa terra. Ainda que muito utilizado no Algarve, de que dizem ser originário, foi porém Sesimbra o porto onde, durante mais tempo, o famoso canídeo participou na vida piscatória, mormente a bordo das barcas da pesca do alto ou do aparelho com anzóis.

Por sinal foi um sesimbrense, o Prof. Manuel Fernandes Marques, catedrático da Escola Superior de Medicina Veterinária, que fez o primeiro estudo científico, que está publicado, e onde estabeleceu aquilo que se chama o estalão ou protótipo da raça.

“… nadador professo e mergulhador arrojado, entra na água com a voluntariedade de um anfíbio e nela se mantém, sem coacção nem enfado, como se a água lhe fosse o segundo ambiente vital. Ir à água buscar seja o que for, constitui para ele tarefa e diversão agradável…”.

Assim descreve, aquele distinto cinólogo, o cão que tão bem conheceu na sua terra. A sua inata capacidade para a natação, com quaisquer condições de mar, deve-se ao facto de possuir membranas interdigitais nas patas dianteiras, que representa uma das suas características.

A rapidez com que mergulhava e nadava, tornou-se num precioso auxiliar dos pescadores, principalmente na recuperação do peixe que escapava dos anzóis durante o alar do aparelho. Na verdade, a capacidade demonstrada nessas acções granjeou-lhe justa fama.

Colocado invariavelmente na amurada da proa – ponto mais alto da embarcação – o animal seguia atentamente o trabalho dos pescadores. Assim, sempre que um peixe se desferrava, atirava-se logo à água sem que fosse necessário
alguém lhe ordenar. Sem que, também, fosse ensinado, sabia abocar o peixe sem o molestar minimamente, pois prendia-o com firmeza por uma das barbatanas, no caso das pescadas, ou pela cauda quando se tratava de um peixe-espada. Todavia, os seus préstimos eram bem abrangentes, porquanto, não só um determinado latido assinalava a aproximação de cardumes, com um certo rosnar e agitação prenunciava temporal. E até quando, ganindo, procurava esconder-se, era aviso da presença de algum tubarão, o seu grande predador.

Nesse tempo cada barca tinha um ou dois cães, cujos nomes eram indicados no acto da matrícula das companhas na Delegação Marítima. Por isso se dizia, que ao cão só faltava a cédula marítima pois estava também matriculado. Em terra, para além da guarda da loja de companha, onde tinha alojamento, era ainda companhia do “moço chamador” que, de madrugada, andava de rua em rua chamando os pescadores para o embarque. Os seus préstimos, que mereciam o apreço de toda a população, conferiam-lhe o direito a receber um quinhão de peixe e também um décimo da parte, ou seja a remuneração em dinheiro do produto da pescaria que iria custear a sua alimentação, durante os períodos em que a barca estava em terra.

Porque não conhecemos a sua actuação no alto mar, as imagens que mais nos ficaram na memória foram o modo como o cão divertia a garotada da época quando, em constantes correrias junto à borda d’ água, se lançava ao mar para agarrar, e trazer de volta, algum pedaço de cortiça ou de madeira, que da praia atiravam para a água. Mais exigente do que isso, era a recolha das pequenas pedras arremessadas e que se afundavam a algumas braças misturando-se com muitas outras. Todavia, o canídeo rapidamente as recolhia mergulhando a pique e sabendo distingui-las entre as demais. Depois, os seus pulos e animados latidos exteriorizavam a alegria da função cumprida, que tinha recompensa nas palavras de admiração e nos afagos dos presentes.

Outra imagem, também muito comum, era ver-se o cão d’ água com o pelo cortado em juba, que o distinguia dos outros canídeos, caminhando ao lado do arrais, por regra o seu dono, deixando transparecer o contentamento por transportar, seguro na boca, o saco de rede contendo o seu quinhão de peixe.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de março de 2009