Moços da Pesca

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Nado e criado aqui à beiramar, correm-nos nas veias e na alma os genes de uma longa ascendência de pescadores. Assim, embora não tenha seguido a profissão marítima, desde bem cedo me senti atraído pelo sortilégio do mar e da vida piscatória. E é com profunda emoção que recordo o tempo em que, embevecido, ouvia os mais velhos contarem  suas histórias da pesca, aventuras e desventuras das suas vidas sobre as ondas. A praia estava então cheia de barcos e de aprestos marítimos, e os velhos arrais instruíam os moços nos mesteres e segredos das artes de pesca, seguindo a tradição da cultura sesimbrense.

Era um tempo em que qualquer filho de um pescador seria pescador também, pois desde os primeiros anos ele não ouvia falar de outra coisa que não fosse a vida do mar. Para o mar via sair todos os dias pais e irmãos. Para o mar sairia também passando a comungar com ele como que em resposta ao apelo dos avoengos. Ser pescador era, desde tempos imemoriais, o modo de vida nesta terra que, ainda há cerca de 50 anos, ocupava perto de 3000 homens. E a prática da pesca, onde os homens nunca tiveram a concorrência das mulheres, continha em muitos aspectos prodígios de engenho e sabedoria. Engenho e sabedoria que teve maior expressão nos vários sistemas de captura dos peixes, os quais foram sendo criados ao longo dos tempos e de que ainda resta, como expoente digno de admiração, o clássico sistema de linhas e anzóis a que deram a designação de “espinhel”.

O arrais, ou mestre de pesca, figura de topo da hierarquia tradicional que tinha os graus de moço, companheiro e mestre, era depositário dum conhecimento ancestral que se transmitia de geração em geração e fazia da pesca, do anzol entenda-se, mais do que uma profissão, uma arte. Porque essa arte implicava uma iniciação, competia ao mestre iniciar os mais novos, os chamados moços de pesca.

A loja da companha e a praia eram os lugares de aprendizagem. No primeiro decorria a fase mais prática da sua formação. Havia que aprender a preparação da “caçada”, que compreendia as operações de “desemachuchar” o grande emaranhado de linhas vindas da pesca, substituir os anzóis, arames e estrovos que já não estivessem em condições, empatar os anzóis e “ensarrumar” ou arrumar as linhas com anzóis prontas para serem iscadas.

Na praia começavam por receber noções de orientação e meteorologia bem como a conhecer o fluxo e refluxo das águas do mar, ao mesmo tempo que iam sabendo o nome das várias espécies da fauna e da flora marinhas, e ainda a usar os remos e as velas na manobra das pequenas embarcações, como a “chata” e a aiola. Cabia-lhes ainda uma outra tarefa, de todas a mais árdua, constituindo como que um rito de passagem, que era a de “moço chamador”. E com isso, ainda infantes, já conheciam a dureza da vida, levantando-se de madrugada para, calcorreando as ruas da vila, chamar os pescadores para as fainas da pesca.

Isso representava o primeiro passo na ascenção da escala hierárquica, pois só depois de chamadores passariam a “moços de terra”, a seguir “moços de mar” e depois companheiros ou camaradas. Progressão que se fazia mediante provas de saber, e também de actos de coragem e de companheirismo, comprovados pelos arrais. Com o mesmo confirmado saber e valor poderiam um dia chegar à categoria de arrais ou mestre, a que só se acedia por grande mérito.

Para esses moços, a praia não era apenas o lugar onde lhes ensinavam o exercício da pesca, mas também o ponto de encontro, o grande espaço lúdico, de liberdade e de revelação de um mundo a descobrir. Gratamente recordamos que devemos a muitos desses rapazes “que nunca foram meninos”, quase tudo o que aprendemos sobre o mar, a pesca e os peixes. Fomos seus companheiros nas deambulações pela borda d’água, especialmente durante a baixa-mar que punha a descoberto os iodados penedos onde podíamos recolher, em grandes quantidades, caramujos, mexilhões ou lapas que, tantas vezes, serviam como refeição familiar.

Com eles aprendemos a nadar, nas águas tranquilas da “Praínha” onde, quais precursores do nudismo, nos banhávamos em pêlo durante as cálidas tardes de Verão. No meio deles tivemos a revelação de que, uns montículos de areia perto da borda d’água denunciava a presença, a pouca profundidade, daqueles pequenos e então abundantes crustáceos a que chamavam “freiras” e constituíam um bom petisco. Tal como nos lembramos de termos aprendido a improvisar um camaroeiro, pois até um simples lenço servia para recolher, em tanta fartura existente nas múltiplas poças, os pequenos camarões que até comíamos crus. Ou ainda das engenhosas armadilhas ou laçadas para caçar gaivotas ou outras aves marinhas que nidificavam junto à costa.

Pela vida fora acompanhámos o percurso, quase sempre bem sucedido, de muitos desses moços nossos amigos que se distinguiram como simples pescadores ou distintos arrais, tal como marinheiros nas marinhas mercante ou de guerra, tripulantes dos lugres bacalhoeiros ou dos arrastões de Cabo Branco, e até como prestimosos colaboradores dos biólogos nos navios oceanográficos do IPIMAR.

E o seu prestígio era tanto que, quando se candidatavam a qualquer dessas actividades, fora de portas, a simples menção da terra de origem representava a melhor credencial, a mais valiosa carta de recomendação.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de setembro de 2009