O Arrais Diogo

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Porque disso não ficou qual­­­quer notícia, não sabemos se o rei D. Carlos recebeu alguma individualidade sesimbrense durante as muitas vezes que permaneceu na baía de Sesimbra. O que realmente sabemos, através de vários testemunhos que chegaram aos nossos dias, foi que o monarca recebia habitualmente, a bordo do iate real, um grupo escolhido de pescadores locais que lhe davam colaboração nos seus estudos de oceanografia e das pescas, efectuados na nossa costa. E ficou também conhecida a grande estima e apreço que o rei devotava a esses pescadores, cujo saber e engenho enaltecia com admiração.

Dentre todos relevava um dos mais afamados mestres de pesca, de seu nome Diogo Justino dos Reis, então considerado expoente dum tradicional escol de pescadores que tornaram Sesimbra num dos mais  notáveis centros piscatórios do país. Nascido em 23 de Março de 1863, no seio de uma família que contava várias gerações de homens do mar, o arrais Diogo, como era vulgarmente conhecido, embora nunca tivesse frequentado qualquer escola, desde bem cedo porém revelara dotes de inteligência, que o distinguia dos seus pares, para além de uma invulgar capacidade de aprendizagem de tudo quanto se relacionava com a vida marítima. Profundo conhecedor das lides da pesca, onde desde criança fora iniciado pelos mais velhos, segundo a tradição, Diogo impressionava o rei quando, navegando nas nossas águas costeiras, mencionava os nomes dos vários mares, as distâncias a que ficavam da baía, a natureza dos fundos, se eram arenosos ou rochosos, as respectivas profundidades em braças, as migrações dos peixes, as zonas e épocas do ano em que se capturava esta ou aquela espécie, e os melhores métodos para as pescar. Aliava a tudo isso aquilo que se poderia chamar de meteorologia dos pescadores, pelo conhecimento das correntes marítimas, do rumo dos ventos, das fases lunares, da orientação pelas estrelas, da leitura das nuvens e dos crepúsculos como indícios de bom ou mau tempo. Cativado pela sabedoria daquele homem iletrado, o soberano fez dele o companheiro predilecto nas suas pescarias, dedicando-l he tal amizade que, a bordo, era considerado como seu hóspede.

Dessa ligação ficaram conhecidos alguns episódios interessantes, como aquele que a seguir contamos tal como sempre o ouvimos. Um dia, o arrais Diogo lembrou-se de oferecer a D. Carlos um belo imperador que pescara na sua barca. Para tanto, dirigiu-se ao iate ancorado ao largo da baía pedindo que a sua presença e intenção fosse comunicada ao rei. Este não se fez esperar e, acompanhado do comandante e outros oficiais do navio, aproximou-se do visitante perguntando-lhe o nome do peixe que trazia. Saiba vossa majestade que isto é um imperador, foi a resposta. Mudando de semblante e com um tom de voz mais grave D. Carlos, fingindo-se aborrecido, disse-lhe de imediato: “Pois trata já de atirar esse peixe ao mar porque, aqui no reino, ninguém pode ser mais do que eu”. Visivelmente embaraçado, Diogo só percebeu que se tratara de um dito de espírito do rei, quando este, às gargalhadas, lhe estendeu a mão para manifestar o seu agradecimento.

Tendo falecido em 23 de Março de 1927, com 64 anos de idade, os seus restos mortais encontram-se num ossário do cemitério da vila, cuja urna estava acompanhada de um retrato do rei, que este lhe oferecera com dedicatória. Em sua homenagem a Câmara Municipal denominou “Rua Arrais Diogo” a velha “Rua do Quebra-Costas”, actual Rua D. Sancho I. Também o Clube Naval de Sesimbra, fundado poucos anos depois, deu o seu nome a um dos dois escaleres que mandou construir para a prática desportiva do remo. Comemorando-se, no final deste mês, o “Dia do Pescador”, pareceu-me adequado deixar aqui esta lembrança da relação de proximidade que um arrais sesimbrense manteve com um Rei de Portugal.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de maio de 2009