A lufada de cavala

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Conhecemos épocas, que cada vez se vão afastando mais da nossa memória, em que as crises na pesca, que afetavam profundamente toda a vida sesimbrense, eram mais consequência dos prolongados vendavais que impediam as barcas de se fazerem ao mar, na ausência de um porto, ou até por ser tão grande a abundância de pescado que os  mercados não absorviam mas nunca, por nunca ser, da sua escassez. Eram tempos caraterizados pelas lufadas, termo da nossa linguagem popular que designa a extraordinária quantidade de algumas espécies de peixe miúdo, como a sardinha ou a petinga, o carapau ou o pelim e também a cavala, as quais, de modo sazonal e intermitente, arribavam à nossa costa e tinham grande relevância na economia local.

Lembrámo-nos disto quando, há dias, conversando com um velho pescador, um dos poucos que restam dos muitos com quem tivemos o gosto de conviver e tiveram largo trato com quase todas as artes de pesca da nossa terra, nos foi perguntado se nos recordávamos da grande lufada de cavala que se deu há mais de 50 anos. Temos ainda plena lembrança desse singular acontecimento, verificado no verão de 1956, até porque, ao tempo trabalhávamos na gerência de uma armação de pesca da firma Roquette & C.a L.da, denominada A Torre, que tinha lugar no lado nascente da baía e, por sinal, nas levantadas de um só dia chegou a trazer à lota 18 barcas carregadas de cavala, que representou a maior safra da temporada.

A lufada de cavala naquele ano, dada a sua duração e a elevadíssima quantidade obtida constituiu de facto um sucesso verdadeiramente extraordinário em qualquer época e com qualquer espécie de pescado. Durante semanas sucessivas as “armações à valenciana”, e também as traineiras, descarregaram na lota toneladas e toneladas de cavala, numa abundância tal que, por vezes, ou já não tinham compradores ou era vendida por preços de tal modo irrisórios que se dizia ter sido dada. Importa aqui referir que, naquele tempo, o que não passaria pela cabeça de ninguém era deitar peixe ao mar, desperdiçá-lo, pois havia sempre maneira de o oferecer, de o aproveitar nem que fosse para guano.

Valeu na circunstância, para que tão grandes pescarias tivessem alguma expressão económica, o recurso à indústria nacional de conservas, mormente às fábricas algarvias, que já tinham um bom fabrico daquele peixe em filetes com azeite, o qual, como ainda hoje acontece, tem a preferência dos consumidores. E cabe ainda sublinhar que a obtenção desse recurso resultou de uma congregação de esforços, invulgar na época, entre os compradores, negociantes de peixe e os camionistas, que fez deslocar ao sul do país um grupo de seus representantes para auscultar a possibilidade das unidades conserveiras da região poderem adquirir a enorme quantidade de cavala que estava a ser pescada em Sesimbra. Ainda que se tenham manifestado interessados, os industriais algarvios só aceitaram o negócio depois de terem assegurado a colocação do produto no mercado internacional, onde aliás as conservas portuguesas gozavam de grande prestígio devido à sua superior qualidade. O mais notável de tudo isto foi a celeridade, numa época de vários condicionalismos, em que decorreram todas as diligências. A partir de então, uma longa fila de camionetas posicionava-se na estrada marginal para receber as várias toneladas de cavalas que eram pescadas diariamente, levando-as até aos centros fabriqueiros, facto que tornou minimamente lucrativa a atividade das artes piscatórias produtoras e toda a mão d’obra complementar.

E a conversa, que deu aso a esta breve evocação da maior lufada de que há lembrança, derivou depois para comentar as ações de valorização, ultimamente desenvolvidas tanto a nível local como nacional para o pescado em geral e para a cavala em particular. Todavia, ainda que se esteja muito longe de atingir as quantidades de outros tempos, a cavala continua a ser abundante na nossa costa mas tem o senão do valor obtido em lota não ser compensador. Por outro lado, e infelizmente, a cavala já não faz parte dos nossos hábitos alimentares e, pior do que isso, é por muitos olhada com um certo desdém, circunstância que mereceu do nosso interlocutor judiciosos comentários de reprovação. Talvez esse facto seja ainda resultante de uma mentalidade instalada, desde o tempo em que não se recomendava o consumo dos chamados peixes de pele azul como a sardinha, a sarda, a cavala e até o peixe-espada porque, dizia-se, estava cientificamente provado que eram prejudiciais para a pele. Em nosso entender haverá, nos tempos que correm, imperiosa necessidade de alterar comportamentos no que respeita à alimentação, de um modo geral, e promover um melhor aproveitamento de todo o peixe que pescamos, até para reduzir aquele muito que importamos. Tanto mais que está hoje plenamente comprovado que os tais peixes de pele azul, que foram sempre os mais abundantes, contêm uma das gorduras mais preciosas para o nosso organismo, que é o chamado ómega 3, o qual, entre os outros ricos nutrientes daquelas espécies, é afinal de contas imprescindível para uma boa saúde cutânea.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de janeiro de 2013