A Mulher do Pescador

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Ao contrário do que acontecia em outras terras do país, particularmente nas do norte, as mulheres sesimbrenses não tinham qualquer papel na vida piscatória, que era exclusiva dos homens. De acordo com a tradição ensinavam-lhes que o seu lugar era dentro de casa onde, desde bem cedo, faziam a aprendizagem das lides caseiras, de tudo quanto respeitasse à manutenção do lar, à sua formação de futuras esposas e mães. Vivia-se então um certo tipo de matriarcado, traduzido no velho ditado “o homem barca e a mulher arca”. O homem produtor, angariador de meios de subsistência com as suas embarcações, a mulher zelando, usando com parcimónia os proventos que lhe eram confiados.

Era um estilo de vida familiar ancestral e tacitamente aceite. Por isso se dizia que, em terra, o pescador reinava mas não governava. Ele era o chefe de família mas, na realidade, era a mulher que detinha a liderança, a administração da vida do casal. E era tanto assim, que o pescador designava a mulher como a sua patroa. O pescador antigo parecia mudar de personalidade, quando punha o pé em terra. Era como se deixasse no mar a sua caraterística figura de pessoa corajosa e destemida, que enfrentava com naturalidade ventos e procelas, e onde servindo-se dos aparelhos e artes de pesca, criados pelo seu engenho, sabia encontrar e recolher as mais variadas espécies piscícolas, para se transformar num homem como que exilado do seu meio natural.

Nos intervalos da sua labuta diária, ou quando o mau tempo não permitia saídas para a pesca, ele juntava-se aos amigos na taberna em longas e animadas conversas que tinham como tema de fundo o mar, sempre o mar. Em terra não tinha nem regalias nem responsabilidades, mostrava-se indiferente, alheado dos problemas do dia a dia da vila, da governação municipal ou das suas instituições. No mar, no mar sim é que ele se sentia e era gente. E tão acentuado era o seu distanciamento das coisas em terra que, para tratar de qualquer assunto pessoal junto das repartições públicas, ou até nas idas ao médico, era indispensável a companhia da consorte, que muito decidida e explícita, era o porta-voz do marido, que se mantinha mudo e quedo, limitando-se por vezes a confirmar com a cabeça o acerto daquilo que ouvia.

Em casa era também a mulher que fazia a gestão dos bens familiares, empenhando-se na boa aplicação dos ganhos do marido, que bem sabia serem fruto de jornadas de trabalho duro, cheias de perigos e marcadas pela incerteza. Até porque ao seu homem, talvez porque andasse quase sempre no mar, faltasse um certo espírito de economia, ela primava por dar maior valor ao dinheiro, tendo sempre presente a necessidade de poupar, de usar com moderação os já de si parcos recursos. E faziam-no trabalhando dedicada, afetuosamente, sem horários, sem folgas, sem férias, inteiramente ocupadas nas múltiplas tarefas domésticas que, a par da geração, criação e educação dos filhos, incluía os trabalhos da cozinha, o lavar, coser e engomar a roupa e ainda o arranjo, a limpeza da casa, num tempo em que não havia a gama de eletrodomésticos que hoje tanto facilitam esses afazeres. Para além disso salientava-se também a criatividade, o engenho com que confecionava o seu próprio vestuário e transformava algumas peças de roupa, que passavam de pais para filhos, de irmãos para irmãos, afeiçoando-as de acordo com a compleição dos novos utilizadores.

Designadas domésticas, em termos profissionais, essas mulheres sofridas e de uma abnegação sem limites, deveriam antes terem sido classificadas, isto é, estarem numa classe que, com legitimidade, poderíamos nomear de gestoras de vida familiar, que conseguiam operar verdadeiros prodígios de economia, obtendo tanto com tão pouco.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de março de 2012