A sardinha antes da grelha

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Considera-se, como verdade incontestável, que temos do melhor peixe do mundo, e entre as espécies mais  apreciadas pelo seu sabor está a sardinha. Foi sempre muito grande a quantidade de sardinha pescada na costa sesimbrense ou, melhor dizendo, desde a ponta do Cabo Espichel até à Arrábida prolongando-se pela costa da Galé, zonas onde, no princípio do século XX, pescavam mais de trinta artes de pesca fixas, as designadas armações à valenciana para a pesca da sardinha que obtinham avultados rendimentos. E era tão grande a fartura que o nosso clássico Raul Brandão, no seu belo livro Os Pescadores, de cuja leitura retiramos sempre algum proveito, dizia que “o mar lhe parecia compacto em sardinha”.

Espécie nómada, cujos cardumes – maravilhoso fenómeno de gregarismo – apareciam regularmente nas nossas águas, devido à sua temperatura e riqueza planctónica, a sardinha é um dos peixes com maior capacidade de reprodução. Para termos uma ideia da sua fertilidade, basta dizer que cada uma gera anualmente 70 mil sardinhas. Essa fecundidade e a grandeza dos bancos de sardinha, que tanto impressionaram o escritor, parece ter sempre afastado a ideia da possibilidade da sua extinção.

Ao tempo já se pescava quase todo o ano, e também ao longo do ano se comia sardinha não só porque havia abundância mas também porque permitia várias confeções e não apenas, como no presente vem sendo hábito, principalmente depois de reabilitada em termos dietéticos, em fogareiros de carvão, sem dúvida a mais conhecida e apreciada de todas.

Estávamos ainda longe de saber que é rica em ácidos gordos que torna o sangue mais fluido, que diminui o mau e aumenta o bom colesterol, e também ainda não conhecíamos aqueles sábios que a apontavam, conjuntamente com os demais peixes de pele azul, como prejudicial à saúde. O que sabíamos, e isso chegava, é que era o mais acessível, barato e farto alimento da nossa população, que a comia cozida, frita, panada, de escabeche ou de caldeirada e até escorchada, ou seja conservada em sal, estripada e sem cabeça, para ser comida no inverno quando era mais escassa. Hoje, que dispomos de congeladores, é possível comer, em qualquer época do ano, a sardinha pescada no tempo em que atinge o ponto máximo do seu sabor, que é por alturas do solstício de verão. Daí, o conhecido ditado: “a sardinha pelo S. João pinga no pão”. Todavia, nos últimos anos, tem-se verificado que já não é na quadra de celebração dos santos populares que a sardinha apresenta o seu tão singular teor de gordura. A sardinha boa para grelhar aparece agora mais tarde do que era habitual mas, em contrapartida, mantém-se gorda durante mais tempo.

A par disso, e o que é bastante pior, a quantidade de sardinha pescada tem diminuído de forma significativa, provocando crise no setor. Como em tempos ouvimos a um antigo armador, pesca e crise são palavras que estão de tal modo associadas, que não se pode falar de pesca sem imediatamente lhe ligarmos a ideia de crise. Crise que poderá ter diversas causas, dado que a pesca porque é uma atividade aleatória tem as suas contingências. Causas naturais como modificações hidroclimáticas ou a diminuição do plâncton, que faz parte integrante da biologia da sardinha, a par da poluição e destruição de ecossistemas marinhos, podem estar na origem das alterações verificadas nas suas flutuações. Apesar da sardinha ser um dos peixes que, através dos tempos, mais atenção tem merecido por parte dos biólogos e naturalistas, relativamente à sua vida, habitat e deslocações permanecem dúvidas, interrogações, que nos fazem lembrar o verso do nosso épico: «coisas do mar que os homens não entendem».

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de setembro de 2011