O carapau – Peixe do Povo

carapau-seco

Está uma “lufada”, ou está “uma arraza” de carapau na lota! Ouvia-se isto, como um grito de júbilo que ressoava logo ao alvorecer pelas ruas da velha Sesimbra, ainda adormecida, significando que tinham chegado à baía, para venda na “lota do mar”, grandes quantidades de carapau pescado pelas antigas “armações”. E esse sentimento de regozijo, que se repercutia por toda a vila, traduzia para a população, na sua grande maioria economicamente dependente das pescas, o prenúncio de melhores proventos para as famílias dos pescadores, melhores vendas para o seu comércio em geral e, ao mesmo tempo, para muitos dos comerciantes, promessa de liquidação ou amortização dos valores acumulados no velho rol de dívidas, durante o Inverno, sempre na esperança de que, na Primavera e Verão seguintes, a abundância desse peixe permitisse “ganhar mais alguma coisinha”.

À medida que a notícia se difundia, iam-se conhecendo pormenores: “estão duas barcas da Varanda, mais duas do Burgau, e as demais armações só mandaram uma barca cada, ou porque pescaram menos ou porque meteram o peixe na sacada, para melhor o venderem mais tarde.

Depois, e de todos os lados, viam-se pessoas de várias idades, os chamados trabalhadores indiferenciados, que se dirigiam para a praia, formando uma pequena multidão que, por incrível que hoje pareça, tinham tarefas bem definidas naquele afã do movimento da lota.

Eram também muitos os terristas que satisfaziam a sua curiosidade dirigindo-se ao muro do Largo da Marinha, para ver aquele espectáculo, sem igual em todo o país, da chegada, venda, descarga e remoção de toneladas de carapau. Curiosamente, nunca vimos dicionarizado o termo “lufada” com o significado de grandes quantidades de peixe, ou do arribar à costa de grandes cardumes, neste caso de peixe miúdo, mas sim designando uma rajada de vento, rápido e intermitente.

“Lufada” será, portanto, uma das muitas palavras, cuja origem desconhecemos, do antigo vocabulário dos nossos pescadores. “Uma arraza”, que parece significar encher até aos bordos, embora também muito usada era porém  menos que a palavra “lufada”, que ganhou preponderância na linguagem sesimbrense.

Sesimbra foi durante longos anos conhecida como a “terra do carapau”, por ser o primeiro porto fornecedor da espécie, que chegava a vários pontos do país, mas em maior quantidade a Lisboa, em cujas ruas e vielas se ouvia, gritado pelas varinas, o pregão: “carapau de Sesimbra”.

Dada a sua abundância e baixo custo, era um peixe que chegava à mesa dos pobres, sendo então vendido à dúzia, que não era doze mas treze, pois vigorava o costume de acrescentar-se mais um que, diziam, “era para o gato lá de casa”. Também nomeavam “carapau de gato” o carapau juvenil, entre nós chamado “pelim” e que, mais tarde, viria a ser apelidado de “jaquinzinho”, de óptimo paladar comido frito com espinha e tudo.

Porque a sua pesca era de carácter sazonal, dado que os cardumes apareciam com mais regularidade depois da “lua marçalina”, como os pescadores chamavam à lua nova de Março, era preciso prevenir o alimento para todo o ano. Daí o hábito de secar o peixe que ficava como reserva para os longos invernos, em que não se podia ir ao mar. Por isso havia sempre em casa algumas cambadas de carapau seco.

As cambadas eram como colares de peixes, abertos e espalmados, que se punham a secar depois de, com uma agulha grossa, serem ligados ou enfiados com uma linha de sisal. A frequência com que se viam as cambadas, em muitas ruas da vila, serviu até para os pescadores de Setúbal, que se orgulhavam de serem da “capital da sardinha”, gracejarem com os de Sesimbra a quem diziam serem da “capital do carapau seco”.

Outros motejos ou ditos de espírito ficaram assinalados pelo nome do peixe, que se confeccionava de várias maneiras e do qual o povo dizia que “era como o pão porque nunca enjoava”. “A sua nobreza é a do carapau”. Dizia-se de quem se blasonava de pergaminhos que não tinha e cuja abastança, por vezes canhestramente ostentada, tinha exactamente origem nos rendimentos da pesca ou dos negócios com o transporte e venda do carapau das “armações”. E a alguém, que se mostrasse por demais presunçoso ou gabarola, era-lhe dado o epíteto zombeteiro de “carapau de corrida”.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de janeiro de 2009