D. Carlos e Sesimbra

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Tendo manifestado, desde bem cedo, a sua paixão pelo mar e seus segredos, D. Carlos dedicou-se com grande  empenho ao estudo da oceanografia e das pescas, tendo iniciado a sua actividade de investigação no Verão de 1896, a bordo do seu iate “Amélia”. Esses primeiros estudos incidiram sobre os fundos da embocadura do Tejo e, com mais intensidade, na “fossa de Albufeira”, em frente da nossa Lagoa, dado que tinha grande interesse pela pesquisa em zonas de grande profundidade.

Com participação activa em todas as tarefas, fez-se acompanhar por alguns estudiosos que viriam a constituir o primeiro núcleo de cientistas nacionais dedicados às coisas do mar. Aliás, dois deles, os naturalistas Barbosa du Bocage e Brito Capelo, já tinham feito alguns dos seus mais notáveis trabalhos, através de espécies raras recolhidas na pesca à linha pelos nossos pescadores. Porém, os seus mais preciosos colaboradores seriam exactamente pescadores sesimbrenses, entre os quais se destacava o famoso “arrais Diogo”, expoente de uma tradicional estirpe de mestres de pesca, que mereceu a admiração e amizade do próprio rei.

D. Carlos conversava frequentemente com eles, ouvia-os atentamente e tomava nota de tudo quanto de interessante lhes ouvia, acerca das espécies piscícolas em que as nossas águas eram férteis, ganhando com isso amplos conhecimentos sobre as suas características, locais, fundos, processos e épocas mais propícias para as respectivas pescarias.

Ao mesmo tempo que estudava a batimetria e as correntes marítimas da nossa costa, ia conhecendo em pormenor as múltiplas artes de pesca praticadas em Sesimbra, revelando particular curiosidade pelo aparelho de linhas e anzóis inventado pelos nossos pescadores, que lhe deram a designação de “espinhel”.

Se no estudo dos fundos manifestou apreço pela maneira como os pescadores conheciam com precisão, não só o local, mas a profundidade de cada pesqueiro e os peixes que lá tinham o seu habitat, também relativamente às correntes não deixou de revelar surpresa, já familiarizado com expressões como “água à vila” ou “água ao cabo”, perante o saber, de experiência feito, dos vários factores que as provocam ou influenciam, como as estações do ano, temperaturas, luas, ventos e marés.

Mas de tudo, o que lhe mereceu maior interesse e estudo foi a composição e utilização do clássico “espinhel”, que considerou processo engenhoso, eficiente, selectivo, tendo até mandado construir uma embarcação, com as características da “Barca tipo Sesimbra”, da qual era lançado e recolhido o aparelho, o que não era possível fazer-se de bordo do iate.

Foi nessa barca e seguindo sempre a experiência dos pescadores que, depois de conhecer a fauna do planalto continental, conseguiu fazer pescarias a mais de 2.000 metros de profundidade, na procura de espécies abissais, particularmente dos esqualos sobre os quais deixou um importante estudo.[/bscolumns][bscolumns class=”clear”][/bscolumns][bscolumns class=”one_third”]odontaspis-nasalatus[/bscolumns][bscolumns class=”one_half_last”]Curiosamente, seria nessa época que pescadores sesimbrenses colheriam, à profundidade de 603m, um peixe com características desconhecidas. Sabendo das investigações que o monarca vinha realizando, cuidaram de levar ao seu conhecimento aquele espécime. Tendo interrogado os pescadores sobre o nome do peixe, obteve como resposta que era “um exemplo”, designação peculiar que empregavam para toda e qualquer espécie não conhecida.

Adquirido o exemplar, que foi mantido no laboratório de bordo, D. Carlos viria a descrevê-lo minuciosamente como uma espécie nova e o nome científico de Odontaspis Nasutus, a que acrescentou o seu apelido Bragança. Mas não foi apenas pelas investigações oceanográficas  e pelas pescarias, com sua estreita relação com os nossos pescadores, que D. Carlos passou a ser uma importante referência na vida sesimbrense. A impressão que lhe causaram os efeitos destruidores do incêndio, ocorrido em 11 de Junho de 1902, levou-o a patrocinar a fundação da Real Associação dos Bombeiros Voluntários de Sesimbra, da qual foi Presidente de Honra e a quem ofereceu uma bomba tipo americano, que representava o que de melhor existia na época para o combate a fogos. Em homenagem ao ofertante deram-lhe o nome de “Bomba D. Carlos”, encontrando-se exposta como preciosa relíquia, na sede daquela associação.

Desembarcando com frequência para visitar informalmente a vila, D. Carlos chegou a assistir às festas de Nossa Senhora do Monte do Carmo, então as mais importantes e concorridas que se realizavam na nossa terra. As quermesses que se faziam no arraial das mesmas festas, contavam com valiosas prendas da família real e, naquela que se celebrou em Agosto de 1904, foi sorteado o tinteiro de prata lavrada que o rei ofereceu e é hoje peça relevante do património da Santa Casa da Misericórdia. Também honrou, com a sua visita, o velho “Grémio Philarmónico” (Clube Sesimbrense) cujos sócios eram de preponderância monárquica, tendo por isso feito oferta do seu retrato e da rainha, expressamente autografados, à colectividade.

Escrevia bem, mas desenhava e pintava melhor, pelo que o seu iate e muitos dos peixes que capturou nos nossos mares perpetuaram-se no traço e na aguarela com que decorava os seus diários de bordo. No acervo artístico do Museu do Mar de Cascais, contase um seu trabalho a tintada-china e aguarela, representando o iate “Amélia II”, que indica ter sido feito em Sesimbra, no ano de 1897.

A toponímia sesimbrense de finais do século XIX, incluía o nome de D. Carlos que designava o largo hoje chamado de Bombaldes. Logo após a implantação da República, substituíram essa nomeação pela de Largo Miguel Bombarda, e os nomes dos próprios regicidas também designariam ruas da nossa terra. Todavia, na história de Sesimbra a memória do rei pescador perdurará, por bem melhores razões.

António Reis Marques
in Sesimbr’Acontece de março de 2008