A indústria conserveira em Sesimbra

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SA66 NOVA

As antigas fábricas de conserva de Sesimbra estavam conotadas com a excelente qualidade dos seus produtos, que visavam fundamentalmente os mercados da Alemanha e da Bélgica. O pescado mais utilizado nesta indústria, e por  isso a chave da sua produção, era a sardinha. Porém, conservavam- -se ainda o atum e outros peixes similares, como alvacoras, cavalas, carapaus pequenos e mesmo chaputas.

A actividade laboral destas fábricas pautava, em grande medida, o ritmo da vida na vila. A sua localização é a evidência disso mesmo. Ao longo do tempo conheceram-se oito destas unidades de produção conserveira: a Fábrica da Belavista, situada junto ao antigo matadouro municipal, onde hoje existe o edifício Atlântico, a Fábrica Francesa, propriedade da firma francesa Salpiquet, localizada nos terrenos fronteiriços à chamada Praça Velha, que ainda hoje acolhe algumas lojas de companha; a Fábrica Pinto, em Vila Pinto, a Fábrica do Chora, na Rua Dr. Manuel de Arriaga, a Fábrica dos Gatos, perto da calçada do cemitério, a Fábrica Lusitana, onde hoje é o mercado municipal, a Fábrica Primorosa ou Fábrica da Caveira, a melhor equipada do concelho, situada junto ao cemitério, e a Fábrica Nacional de Conservas, também propriedade da firma Salpiquet, situada no local do antigo hotel Espadarte.

Quando a sirene tocava, fosse noite ou dia, é porque havia peixe a chegar à fábrica. Tínhamos de largar tudo e correr para lá», conta Noémia Leandro, 91 anos, uma das centenas de mulheres que trabalharam na indústria conserveira que durante sete décadas marcou a paisagem e a economia de Sesimbra. O rigor exigido a quem laborava nas fábricas era seguido à risca e não havia margem para erros. «Dois homens tomavam conta das entradas e saídas e inspecionavam o nosso trabalho», explica Zélia Amigo, 78 anos, que entrou aos 15 para a fábrica A Primorosa, conhecida por “A Caveira”. «Nem podíamos falar, e ao mínimo barulho eramos repreendidas », sublinha.

Todas as funcionárias tinham de ter uma tesoura e um canivete próprios, pois os proprietários apenas davam o avental e o lenço branco de três pontas para a cabeça. «Até as tamancas, que eram obrigatórias, eram compradas com o nosso dinheiro», realça Noémia, que entrou com apenas 9 anos para a fábrica Saupiquet, conhecida por “A Francesa”. «A minha mãe já lá trabalhava e eu fui carregar latas e distribui-las às mulheres», esclarece. Apesar de estar estipulado um horário fixo, das 8 às 12 e das 13 às 18 horas, quando havia peixe não se podia parar. «Cheguei a ficar lá dias e noites seguidas e ir apenas a casa dar comer aos meus filhos», refere.

Apesar da primeira referência a uma fábrica ser de 1890, a tradição da conserva de pescado na vila remonta aos séculos I, II e III, como comprovam os vestígios arqueológicos romanos encontrados recentemente na Avenida da Liberdade, junto ao Largo de Bombaldes, que indicam a existência de um centro de preparados piscícolas naquela zona. A atividade assume, no século XVI, um destaque importante no abastecimento das caravelas que partiam para a expansão ultramarina e, anos mais tarde, passa a ter um papel preponderante também na alimentação da população, sobretudo nos meses de inverno.

Contudo, é no século XIX que a conservação de peixe vive um grande impulso com a descoberta, em França, de que o peixe cozido adequadamente se podia conservar em azeite por muito tempo, sem perder qualidades. Como uma das condições indispensáveis era o peixe estar fresco, os conserveiros franceses deslocaram-se para as costas espanhola e portuguesa para instalar as suas fábricas, o que levou a um grande desenvolvimento desta indústria.

Em Sesimbra, o período mais expressivo decorreu entre o início da I Guerra Mundial e o fim dos anos vinte do século passado, existindo registos que indicam a presença de 12 unidades, que empregavam mais de mil homens e mulheres. Em 1923, a fábrica Bela Vista, instalada na Rua Heliodoro Salgado, ganhou a medalha de ouro na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, o que demonstra que a qualidade das conservas sesimbrenses era reconhecida também além-fonteiras.

Na década de 30 do século passado, A Primorosa produzia uma grande diversidade de conservas, como o atum em azeite, da Primaz, sardinhas em azeite de oliveira, da Mili, ou os filetes de cavala em azeite, da Linda Baía, e exportava para a Europa, Marrocos e Argélia. É nesta fábrica que Clementina Brito, 97 anos, recorda o início do seu ofício de conserveira. «Ia trabalhar com uma fatia de pão na algibeira e depois, às escondidas, juntava-lhe um bocado de albacora», relembra. Também Zélia lembra os riscos que corriam para roubar um bocadinho de peixe para matar a fome. «Se fossemos apanhadas eramos castigadas e podíamos estar uma semana em casa sem receber», frisa. Ao longo de quase três décadas de trabalho na indústria conserveira, Clementina foi um exemplo a seguir. «Via apenas de um olho, mas enlatava muito bem o peixe e muitas vezes fui chamada pelo patrão Abel para fazer as amostras para os compradores verem e escolherem».

O profissionalismo das operárias era de tal forma reconhecido que, em janeiro de 1940, a encarregada da fábrica foi a São Miguel, Açores, treinar as funcionárias da ilha. Apesar das dificuldades, as conserveiras recordam boas memórias daqueles anos. «Era um trabalho duro e exigente mas havia um convívio saudável e um grande respeito entre todos», exprime Noémia. Alberto Neto, 63 anos, filho do mestre da fábrica, cresceu entre as suas paredes. «As minhas férias de Natal eram passadas lá, por isso acompanhei bem aqueles tempos», garante.

O peixe, quando chegava à fábrica, ia para uns tanques com pouco sal, depois era descabeçado e colocado em grelhas para ser lavado. A água salgada ia caindo por cima do peixe e ia fazendo a moura. «O tempo era marcado consoante a gordura do peixe, e este era um aspeto importante para se ter um bom resultado», salienta. Terminado o processo, o peixe era colocado em tabuleiros e seguia para a estufa para ser cozido a vapor. Antes de ser enlatado, era transportado para um local arejado para arrefecer. Depois de receberem o azeite, as latas eram cravadas, trabalho feito exclusivamente por homens, denominados de soldadores, passadas por serradura para serem limpas e batidas umas nas outras para não passar nenhuma com ar dentro. No fim, eram embrulhadas em papel e colocadas em caixotes de madeira.

A diminuição da quantidade de peixe terá contribuído em grande parte para o fim da indústria conserveira em Sesimbra. A última fábrica a fechar foi A Primorosa, em 1961. Alberto Neto afirma que comeu e ainda come muita conserva, não fosse um grande apreciador deste tipo de produto, embora tenha «muitas saudades do que se fazia antigamente». Foi com uma grande vontade de fazer regressar ao presente a qualidade das conservas do passado, que José Nero, 54 anos, neto de um dos fundadores da fábrica A Persistente, mais conhecida pela “do Burro”, resolveu há dois anos ressuscitar o atum Catraio, vencedor da medalha de prata na Exposição Regional de Setúbal, em 1930.

Através de uma pesquisa na Internet, que o levou ao site Sesimbra Expresso, descobriu alguns aspetos curiosos sobre a vila e o seu avô, que fizeram nascer em si a vontade de recuperar a conserva. «Houve um artigo em especial sobre o Natal de 1938, que falava do atum Catraio, e que me fez ficar espantado com a riqueza gastronómica que havia em Sesimbra nessa altura», sustenta. Resgatou o registo da marca e deu início à produção com os mesmos métodos utilizados pelo avô. «Fiquei surpreendido com a aceitação que o produto teve, sobretudo em Sesimbra».

Depois seguiu-se o Bacalhau à Portuguesa, um produto fabricado já em Matosinhos, para onde a fábrica foi deslocada na década de 40, e, em 2011, o Peixe-espada Preto. «Pensei que tinha de fazer alguma coisa a ver com Sesimbra e ainda bem que o fiz porque tem sido um sucesso», afiança. Em abril, José Nero apresentou uma degustação de conservas no Castelo de Sesimbra, para dar a conhecer novas propostas, como o peixe-espada preto com polenta e batata-doce, galantine de sardinha em molho de tomate, sushi de atum com gengibre ou bacalhau e batata-doce. «Quero mostrar que é possível usar conservas relativamente baratas, em receitas bem elaboradas», justifica. Atualmente está mergulhado noutro desafio ligado à vila, a conserva de Espadarte. «Já fiz algumas experiências mas ainda têm de ser afinadas», assegura. Em maio vai lançar Anchovas em Vinho Moscatel do Douro, uma receita que deixou rendido o chef do terceiro melhor restaurante do mundo, o Mugaritz. Num futuro próximo avançará com os Filetes de Cavala em Vinho do Porto, projeto que o pai teve nos anos 60 e que acabou por nunca se concretizar.