A Antiga Lota de Sesimbra

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A antiga lota de Sesimbra que se fazia ao entardecer em plena praia, junto à Fortaleza de Santiago, era um dos acontecimentos mais interessantes da vida piscatória local, não só pela quantidade, variedade e qualidade das espécies piscícolas em que eram férteis os “mares” próximos desta costa, mas também pelo movimento, colorido e tipicismo de que se revestia, num misto de coisas com importância etnográfica que eram seguidas diariamente, com manifesto agrado, por naturais e visitantes, naquele varandim público que é a muralha do Largo do Marinha. Mas não era só o espectáculo, sempre belo e sempre variado, da primeira venda do pescado, cujas características eram únicas em todo o país, que tornava atractiva a tradicional lota de Sesimbra.

Era toda uma sucessão de actos que se desenrolavam num magnífico cenário, em que realçava a singular beleza da nossa baía, com a profusão dos barcos de várias cores, donde se transbordava o peixe para as “chatas” e as aiolas que o levavam até à borda d’água, onde era descarregado e conduzido para o areal, lugar da sua venda. Depois, o pitoresco inconfundível da maneira como o peixe era disposto sobre a areia, em “lotes”, em “eiras” ou em “montes”, numa exposição que destacava a forma, a cor e a frescura de tantas e tão apreciadas espécies.

Um “lote” de peixe-espada são trinta peixes. A areia era alisada com uma tábua e esse peixe era estendido lado a lado, às vezes em longas filas de lotes. As pescadas, chernes, pargos, imperadores, etc., constituíam lotes sem número certo de unidades, mantendo-se contudo para a pescada os números de 24 a 30, conforme o seu tamanho.

A 3 ou 4 de largo, este peixe era colocado verticalmente, cada um sobre um montículo de areia, ficando elevado do chão cerca de um palmo, e cada montículo distanciado um do outro de modo a permitir a passagem por entre eles. Os gorazes, fanecas, salmonetes e outros, eram de um modo geral dispostos em “eiras”, formando um círculo sobre a areia. Cada “eira” podia ter 15 a 20 ou mais peixes. A chaputa era vendida em lotes ou montes, consoante a abundância. Expostos assim os peixes sobre a areia da extensa praia, iniciava-se então a lota ou venda em leilão que, ao contrário de qualquer outro, tinha a particularidade de ser feito em ordem decrescente do valor fixado. Os almocreves e os grandes negociantes juntavam-se à volta do lote e o pregoeiro ou vendedor, tendo já feito, mentalmente, a sua avaliação de acordo com os preços correntes, exclamava: “Vou vender”. Assim, se um lote de peixe pudesse valer, por exemplo 300 escudos, ele avaliava-o em 400, e desse número partia para a venda, contando com inexcedível rapidez e de cima para baixo: 399, 398, 397, 396, etc., até que alguém gritasse o convencional “chui”, em sinal de que arrematara o peixe leiloado.

E aí, o atento vendedor, logo anunciava o preço e o nome do comprador, que o guardafiscal de serviço anotava para efeitos tributários.

A lota prosseguia, dum lote para outro, prolongando-se às vezes noite dentro, quando o pescado era mais abundante. Quando isso acontecia, e por falta de iluminação na praia, a venda fazia-se à luz dos archotes.

E então o cenário transformava-se, com aquela visão fantasmagórica da projecção das silhuetas no areal.

Logo após a arrematação, procedia-se rapidamente à remoção das caixas com o peixe, em padiolas ou em burros até às camionetas estacionadas na estrada marginal, que o transportariam aos vários mercados mas principalmente ao de Lisboa.

Porque tudo ainda se processava com trabalho braçal, era muito grande o número de homens ocupados nessas tarefas. Terminava aqui, mas agora já sem o pescador, seu principal agente, que nunca teve qualquer intervenção nas transacções do produto do seu esforçado trabalho, mais uma jornada, igual a tantas outras, da actividade piscatória que marcou sucessivas gerações de sesimbrenses. Como as mutações são uma constante da vida, a lota também viria a conhecer mudança, que se deu no início da década de 70 com a sua transferência para a zona portuária. Com isso desaparecia, para sempre, o mais belo e genuíno cartaz turístico da piscosa Sesimbra.

António Reis Marques
in Sesimbra’Acontece de setembro de 2007